Salvador: A Alma Afro-Brasileira Entre a Alegria Ancestral e os Horizontes da Saúde Mental

Salvador, a primeira capital do Brasil, é uma cidade que pulsa com uma energia única, um caldeirão efervescente de história, cultura e religiosidade. Banhada pelas águas da Baía de Todos os Santos e abençoada por um sol generoso, a capital baiana, com seus mais de 2,4 milhões de habitantes (IBGE, 2022), é conhecida como a “Roma Negra” pela profunda influência africana que permeia cada aspecto de sua existência, da música à culinária, da fé à alegria contagiante de seu povo. No entanto, por trás da fachada vibrante do Pelourinho, do ritmo do axé e da beleza de suas praias, Salvador, como toda grande metrópole, enfrenta complexos desafios socioeconômicos que se refletem diretamente na saúde mental de sua população. Este texto, com informações contextuais até 21 de maio de 2025, propõe uma imersão na alma soteropolitana, explorando sua rica trajetória, sua identidade cultural singular e, de forma central, o panorama da saúde mental na cidade, seus avanços, obstáculos e as perspectivas para um futuro onde o bem-estar psíquico seja tão celebrado quanto seu Carnaval.

Salvador: Berço da Nação, Coração da Cultura Afro-Brasileira

Fundada em 1549 por Tomé de Sousa, Salvador foi a sede administrativa da colônia portuguesa por mais de dois séculos. Sua localização estratégica, com um porto natural privilegiado na Baía de Todos os Santos, tornou-a um importante centro comercial e o principal porto de desembarque de africanos escravizados no Brasil. Essa herança dolorosa, mas fundamental, moldou de forma indelével a identidade da cidade, que se tornou o epicentro da cultura afro-brasileira no país.

A influência africana é visível em cada esquina. O Candomblé, religião de matriz africana, tem em Salvador um de seus terreiros mais antigos e respeitados. A Capoeira, uma mistura de luta, dança e música, ecoa pelos largos e praças. O Samba de Roda do Recôncavo Baiano, Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, tem suas raízes fincadas na região. O Carnaval de Salvador, uma das maiores festas de rua do planeta, é uma explosão de alegria, música e diversidade, arrastando multidões atrás dos trios elétricos.

A culinária baiana, com seus temperos fortes e sabores exóticos, é outra expressão dessa herança. O acarajé e o abará, vendidos pelas tradicionais baianas em seus tabuleiros, o vatapá, o caruru, a moqueca de peixe ou camarão e o bobó de camarão são iguarias que conquistam paladares e contam histórias de tradição e sincretismo.

O Pelourinho, centro histórico de Salvador, é um Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, com seu conjunto arquitetônico barroco colonial, suas ladeiras de paralelepípedos e suas igrejas seculares, como a imponente Igreja e Convento de São Francisco, com seu interior folheado a ouro. O Elevador Lacerda, um dos cartões-postais da cidade, conecta a Cidade Alta (centro administrativo e histórico) à Cidade Baixa (zona portuária e comercial). O Mercado Modelo, em frente à Baía de Todos os Santos, é um polo de artesanato e produtos regionais.

As praias de Salvador, como o Porto da Barra (considerada uma das melhores do mundo por alguns), o Farol da Barra (com seu forte histórico e museu náutico), Flamengo e Stella Maris, oferecem lazer e beleza natural. A religiosidade popular se manifesta em festas como a de Iemanjá, em 2 de fevereiro, e a Lavagem do Bonfim, uma das maiores demonstrações de fé e sincretismo do Brasil.

Economicamente, Salvador tem no turismo, no comércio e nos serviços seus principais motores. O Polo Petroquímico de Camaçari, na região metropolitana, também exerce uma forte influência na economia local. No entanto, a cidade enfrenta profundas desigualdades sociais, com bolsões de pobreza e violência urbana que contrastam com a riqueza cultural e a beleza natural.

Saúde Mental em Salvador: Entre a Ancestralidade, a Alegria e a Luta por Cuidado Integral

A saúde mental da população soteropolitana é um reflexo dessa complexa tapeçaria social, cultural e econômica. A alegria contagiante e a forte espiritualidade do povo baiano coexistem com os impactos da desigualdade, do racismo estrutural, da violência e das pressões da vida urbana. O cuidado com a saúde mental em Salvador, portanto, exige abordagens que sejam não apenas tecnicamente competentes, mas também culturalmente sensíveis e socialmente conscientes.

A Extensa e Diversificada Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) Soteropolitana:

Salvador possui uma Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) robusta e diversificada, estruturada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para oferecer cuidado em saúde mental em diferentes níveis de complexidade:

• Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): São os principais articuladores do cuidado em saúde mental no território. A cidade dispõe de uma vasta gama de CAPS, cobrindo diferentes especialidades e distritos sanitários:

  • CAPS para Transtornos Mentais (tipo I, II e III): Atendem adultos com transtornos mentais graves e persistentes, com unidades como o CAPS II Rosa Garcia, CAPS II Oswaldo Camargo, CAPS II Professor Adilson Peixoto Sampaio, CAPS II Aristides Novis, CAPS II Águas Claras, CAPS II Maria Célia Rocha, CAPS II Franco Basaglia e o CAPS III Aristides Novis (com funcionamento 24 horas).
  • CAPS AD (Álcool e outras Drogas): Oferecem cuidado especializado para pessoas com necessidades decorrentes do uso problemático de álcool e outras substâncias psicoativas, incluindo unidades 24 horas (CAPS AD III) como o Gey Espinheira e o Pero Vaz, além de CAPS AD tipo II como o Gregório de Matos e o de Pernambués e Liberdade.
  • CAPSi (Infantojuvenil): Destinados ao cuidado de crianças e adolescentes com transtornos mentais, como o CAPSiA Liberdade e o CAPS I Nzinga (que também pode atender este público).
  • CAPS I (para municípios menores, mas também presentes em grandes territórios na capital, como o Professor Luiz Meira Lessa e o CREASI). Estes centros funcionam em regime de porta aberta, oferecendo acolhimento, acompanhamento multiprofissional e diversas atividades terapêuticas.

• Atenção Primária à Saúde (APS): As Unidades Básicas de Saúde (UBS) são a porta de entrada do SUS e desempenham um papel crucial na identificação precoce de problemas de saúde mental, no manejo de casos leves e moderados e na articulação com os CAPS.

• Clínicas-Escola Universitárias: Como um importante polo educacional, Salvador conta com a contribuição fundamental de diversas clínicas-escola de psicologia mantidas por instituições de ensino superior. A Universidade Federal da Bahia (UFBA), o Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE), o Centro Universitário UniFTC, a UNIFACS, a Faculdade Bahiana de Medicina e Saúde Pública, o Centro Universitário UniRuy Wyden, a UNIME, a Faculdade Cairu, a Universidade Católica do Salvador (UCSAL) e a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) oferecem atendimento psicológico gratuito ou a custos sociais para a comunidade. Esses serviços são vitais para ampliar o acesso e para a formação de profissionais.

• Serviços Hospitalares e de Urgência/Emergência: Hospitais gerais e unidades de pronto atendimento devem estar preparados para acolher crises. Serviços especializados em psiquiatria também compõem a rede para casos mais complexos.

• A Força das Iniciativas Comunitárias, Filantrópicas e de Valor Social: Organizações como o Centro de Valorização da Vida (CVV – telefone 188), o Centro Comunitário Batista Clériston Andrade (CECOM), o Centro Social de Saúde Esmeralda da Natividade, o Centro de Orientação Familiar (COFAM), o Núcleo de Psicologia Pablo Duram (do Centro Espírita Cavaleiros da Luz) e a Clínica de Reabilitação Física e Mental (CLIFIR) oferecem apoio, acolhimento e atendimento psicológico gratuito ou a valor social, complementando a rede pública.

Desafios Profundos e Estruturais no Cuidado à Mente:

Apesar da extensa rede, a garantia de um cuidado em saúde mental universal, equitativo e de qualidade em Salvador enfrenta obstáculos significativos:

• Acesso, Equidade e a Demanda Reprimida: A grande extensão territorial de Salvador, a complexidade de seu sistema de transporte e a concentração de alguns serviços podem dificultar o acesso para moradores de áreas periféricas ou com menor mobilidade. A demanda por serviços de saúde mental é imensa, muitas vezes superando a capacidade de atendimento da rede e resultando em longas filas de espera.
• Estigma, Racismo Estrutural e a Intersecção com Crenças Culturais e Religiosas: O estigma em relação aos transtornos mentais ainda é uma barreira considerável. Em Salvador, essa questão é complexificada pela forte presença de religiões de matriz africana, que possuem seus próprios sistemas de compreensão e cuidado do sofrimento. É crucial que os serviços de saúde mental dialoguem respeitosamente com esses saberes, evitando a patologização de práticas culturais e religiosas. Além disso, o racismo estrutural tem um impacto devastador na saúde mental da população negra, majoritária na cidade, gerando traumas, ansiedade e depressão que precisam ser abordados de forma específica e antirracista.
• O Peso dos Fatores Socioeconômicos, da Violência e das Vulnerabilidades: Salvador é uma cidade marcada por profundas desigualdades sociais. A pobreza, o desemprego, a violência urbana (especialmente em comunidades periféricas), a falta de acesso a moradia digna, saneamento básico e educação de qualidade são fatores de risco que comprometem gravemente a saúde mental.
• Recursos e a Sustentabilidade da Rede: A garantia de financiamento adequado para a manutenção, expansão e qualificação contínua da RAPS, bem como a valorização e a contratação de profissionais em número suficiente (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, redutores de danos), são desafios permanentes para a gestão pública.
• Questões Específicas: O uso problemático de álcool e outras drogas, especialmente o crack, a saúde mental de populações específicas (LGBTQIA+, pessoas em situação de rua, vítimas de violência doméstica e sexual), e o impacto da intolerância religiosa na saúde mental de adeptos de religiões de matriz africana são temas que demandam atenção prioritária e estratégias especializadas.

Tecendo Redes de Axé e Esperança: Iniciativas e Perspectivas Futuras:

Apesar dos desafios, Salvador possui uma imensa capacidade de resiliência e criatividade, que também se manifesta na busca por soluções no campo da saúde mental:

• Políticas Públicas e a Busca por um Cuidado Culturalmente Competente e Antirracista: Há um reconhecimento crescente da necessidade de políticas públicas de saúde mental que sejam culturalmente competentes, que dialoguem com os saberes tradicionais e que incorporem uma perspectiva antirracista, buscando reduzir as iniquidades em saúde.
• O Protagonismo da Academia: As universidades locais desempenham um papel crucial na formação de profissionais, na pesquisa científica sobre as particularidades da saúde mental na Bahia e no desenvolvimento de práticas inovadoras e projetos de extensão que beneficiam a comunidade.
• Conscientização, Educação em Saúde, Empoderamento Comunitário e a Luta Antimanicomial: Campanhas de conscientização, como o “Janeiro Branco” e o “Setembro Amarelo”, juntamente com os movimentos sociais em defesa dos direitos das pessoas com transtornos mentais e da luta antimanicomial, são fundamentais para combater o estigma, promover o debate público e fortalecer o controle social sobre as políticas de saúde. O empoderamento comunitário e a valorização das redes de apoio social são estratégias poderosas.
• A Busca por um Cuidado Humanizado, Territorial, Intersetorial e Integrado aos Saberes Locais: A perspectiva é de um cuidado em saúde mental que seja humanizado, centrado nas necessidades e na singularidade de cada indivíduo, que valorize o vínculo terapêutico, que seja construído no território em diálogo com as comunidades, e que se articule com outras políticas setoriais (assistência social, educação, cultura, direitos humanos, segurança pública) para promover a saúde mental de forma integral e respeitosa à imensa diversidade cultural de Salvador.

Salvador, Axé para a Mente e o Coração

Salvador, a cidade da alegria, da fé e da ancestralidade, carrega em sua alma a força de um povo que soube transformar a dor em música, a luta em dança e a fé em resiliência. No campo da saúde mental, os desafios são tão profundos quanto sua história e tão complexos quanto sua diversidade cultural. No entanto, é justamente nessa riqueza cultural, nessa capacidade de mobilização social e na energia vibrante de sua gente que reside o potencial para construir um futuro onde o cuidado com a mente seja uma prioridade e um direito acessível a todos.

Que o axé que emana de Salvador possa inspirar políticas públicas mais justas e eficazes, práticas de cuidado mais humanizadas e culturalmente sensíveis, e uma sociedade mais acolhedora e livre de estigmas. A saúde mental é um pilar fundamental para que a “Roma Negra” continue a ser a “Capital da Alegria”, não apenas durante o Carnaval, mas em cada dia da vida de seus cidadãos.