Belém do Pará: Entre a Exuberância Amazônica e os Desafios da Saúde Mental Urbana
Belém, a capital do estado do Pará, é uma cidade de contrastes e encantos singulares. Portal de entrada para a majestosa Amazônia, a metrópole de mais de 1,3 milhão de habitantes (IBGE, 2022) pulsa com uma energia vibrante, alimentada pela riqueza de sua história, pela exuberância de sua natureza circundante e por uma cultura efervescente que se manifesta em cores, sabores e sons únicos. No entanto, como toda grande urbe, Belém enfrenta os complexos desafios do século XXI, entre os quais se destaca a crescente demanda por cuidados e atenção à saúde mental de sua população. Este texto se propõe a mergulhar na alma de Belém, explorando suas facetas mais conhecidas e, em seguida, adentrando o panorama da saúde mental na cidade, seus avanços, suas lacunas e as esperanças de um futuro mais saudável para a mente de seus cidadãos.
Belém: Uma Pérola da Amazônia, Tecida por História, Natureza e Cultura
Fundada em 12 de janeiro de 1616 como “Feliz Lusitânia”, às margens da Baía do Guajará, Belém nasceu com o intuito estratégico de proteger a entrada da Amazônia das incursões de outros povos europeus. Sua história é marcada por períodos de efervescência e conflitos. O ciclo da borracha, no final do século XIX e início do XX, trouxe uma era de prosperidade conhecida como a “Belle Époque Amazônica”. Fortunas foram construídas, e a cidade se adornou com uma arquitetura imponente, inspirada nos modelos europeus, visível em joias como o Theatro da Paz, o Palácio Antônio Lemos e o Mercado de Ferro do Ver-o-Peso. Antes disso, porém, a região foi palco da Cabanagem (1835-1840), uma das mais significativas revoltas populares do Brasil, que expôs as profundas tensões sociais e a busca por autonomia na Amazônia.
Geograficamente, Belém é intrinsecamente ligada às águas. A cidade é um emaranhado de rios, furos, igarapés e ilhas que compõem o delta do Rio Amazonas. Esse cenário aquático define não apenas a paisagem, mas também o ritmo de vida, o transporte e a economia local. O clima equatorial, quente e úmido durante a maior parte do ano, com chuvas torrenciais que carinhosamente são chamadas de “torós”, molda o cotidiano e a vegetação luxuriante que resiste mesmo nos centros urbanos, como no Bosque Rodrigues Alves, um fragmento da floresta amazônica encravado na cidade.
A cultura paraense, e em especial a belenense, é um caldeirão vibrante de influências indígenas, europeias e africanas. A manifestação máxima dessa fé e cultura é o Círio de Nazaré, uma das maiores procissões religiosas do mundo, que ocorre anualmente no segundo domingo de outubro, atraindo milhões de fiéis e turistas em uma demonstração comovente de devoção à Virgem de Nazaré. Mas a cultura vai além: a música é um capítulo à parte, com ritmos contagiantes como o carimbó, a guitarrada, o lundu e o tecnobrega, este último um fenômeno musical e cultural que emergiu das periferias da cidade, utilizando tecnologias de produção e distribuição inovadoras. O artesanato, rico em cerâmicas marajoara e tapajônica, sementes e fibras da floresta, também expressa a identidade local.
Falar de Belém é, invariavelmente, falar de sua culinária exótica e inigualável. Os sabores do Pará são uma experiência sensorial única. O Mercado Ver-o-Peso, com sua profusão de cheiros e cores, é o epicentro dessa riqueza gastronômica. Ali se encontram ervas medicinais e aromáticas, frutas regionais como cupuaçu, bacuri, taperebá, pupunha e, claro, o açaí – consumido tradicionalmente grosso, com farinha de tapioca ou d’água, e acompanhado de peixe frito ou camarão. Pratos emblemáticos como o pato no tucupi (um caldo amarelo extraído da mandioca brava, com jambu, erva que causa uma leve dormência na boca), a maniçoba (uma “feijoada” feita com as folhas moídas da maniva, cozidas por sete dias), o tacacá (um caldo quente à base de tucupi, goma de tapioca, jambu e camarão seco, servido em cuias) e o peixe filhote na brasa são iguarias que encantam paladares e contam histórias de tradição e saberes ancestrais.
Entre os pontos turísticos que narram a história e a beleza de Belém, destacam-se, além do já citado Ver-o-Peso e do Theatro da Paz, a Estação das Docas, um complexo de lazer, gastronomia e cultura instalado em antigos galpões portuários restaurados à beira da Baía do Guajará; o Forte do Presépio, marco inicial da cidade; o Mangal das Garças, um parque ecológico que oferece uma síntese da fauna e flora amazônicas em plena cidade; o Museu Paraense Emílio Goeldi, uma instituição de pesquisa de renome internacional dedicada ao estudo da Amazônia; e o distrito de Icoaraci, famoso por sua produção de cerâmica.
A dinâmica urbana de Belém reflete seu crescimento e seus desafios. O centro histórico preserva a memória arquitetônica, enquanto novas áreas se expandem, muitas vezes de forma desordenada, gerando questões de mobilidade urbana, saneamento básico e habitação. Economicamente, a cidade se apoia no comércio, nos serviços, no turismo e nas atividades portuárias, sendo também um polo de beneficiamento e exportação de produtos da sociobiodiversidade amazônica, como o açaí e a castanha-do-pará.
Saúde Mental em Belém: Desafios, Avanços e a Busca por Cuidado Integral
Em meio a essa efervescência cultural e aos desafios urbanos, a saúde mental da população belenense emerge como uma questão de crescente importância, refletindo uma tendência global, mas com contornos próprios da realidade amazônica. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental como um estado de bem-estar no qual o indivíduo realiza suas próprias habilidades, pode lidar com as tensões normais da vida, pode trabalhar de forma produtiva e frutífera e é capaz de contribuir para sua comunidade. Em Belém, a busca por esse estado de bem-estar enfrenta obstáculos significativos, mas também encontra iniciativas e profissionais dedicados a promover o cuidado psicossocial.
A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em Belém:
O Sistema Único de Saúde (SUS) estrutura a atenção à saúde mental através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que visa oferecer um cuidado integral e territorializado. Em Belém, essa rede é composta por diversos dispositivos:
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Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): São unidades especializadas que oferecem atendimento a pessoas com transtornos mentais graves e persistentes, e também àquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Belém conta com diferentes modalidades de CAPS:
- CAPS I, II e III: Atendem adultos com transtornos mentais severos e persistentes. O CAPS III oferece acolhimento integral com funcionamento 24 horas, incluindo leitos para permanência de curta duração.
- CAPS AD (Álcool e Drogas): Especializados no atendimento a usuários de álcool e outras drogas. O CAPS AD III também oferece funcionamento 24 horas.
- CAPSi (Infantojuvenil): Voltado para o atendimento de crianças e adolescentes com transtornos mentais. A distribuição desses centros pela vasta extensão territorial da cidade e de sua região metropolitana é um desafio constante para garantir o acesso equitativo.
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Atenção Básica (Unidades Básicas de Saúde – UBS): As UBS são a porta de entrada preferencial do SUS e têm um papel crucial na identificação precoce de problemas de saúde mental, no manejo de casos leves a moderados e no encaminhamento para serviços especializados quando necessário. O apoio matricial, onde equipes de saúde mental dos CAPS dão suporte às equipes da Atenção Básica, é uma estratégia fundamental, embora sua implementação plena ainda enfrente desafios.
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Serviços de Urgência e Emergência: Hospitais gerais e Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) devem estar preparados para atender crises agudas de saúde mental, oferecendo estabilização e encaminhamento adequado. A existência de leitos de saúde mental em hospitais gerais é uma diretriz importante da reforma psiquiátrica.
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Clínicas-Escola das Universidades: Belém possui um número significativo de instituições de ensino superior com cursos de Psicologia que mantêm clínicas-escola. Locais como o Serviço de Psicologia Aplicada (SPA) da Universidade Federal do Pará (UFPA), e as clínicas da Universidade da Amazônia (UNAMA), Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA), Faculdade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA), Escola Superior da Amazônia (ESAMAZ) e Centro Universitário Metropolitano da Amazônia (UNIFAMAZ), entre outras, oferecem atendimento psicológico gratuito ou a custos sociais para a comunidade. Esses serviços são fundamentais não apenas para ampliar o acesso, mas também para a formação de novos profissionais.
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Iniciativas Comunitárias e Organizações Não Governamentais (ONGs): Diversas ONGs e grupos comunitários desenvolvem trabalhos importantes na área da saúde mental, oferecendo apoio, rodas de conversa, atividades terapêuticas e advocacy. A Casa de Plácido, por exemplo, é uma instituição filantrópica que oferece assistência a pessoas com sofrimento psíquico. O Centro de Valorização da Vida (CVV), com seu serviço de apoio emocional e prevenção do suicídio pelo telefone 188, também é um recurso vital.
Desafios Enfrentados no Cuidado à Saúde Mental em Belém:
Apesar da existência dessa rede, a população de Belém enfrenta desafios consideráveis para acessar cuidados de saúde mental de qualidade:
- Acesso e Demanda: A demanda por serviços de saúde mental supera largamente a oferta. Longas filas de espera são comuns nos CAPS e nas clínicas-escola. Além disso, a concentração de serviços em áreas mais centrais pode dificultar o acesso para moradores de periferias e da região insular de Belém, que é extensa e possui características de transporte peculiares.
- Estigma e Barreiras Culturais: O estigma associado aos transtornos mentais ainda é uma barreira significativa. Muitas pessoas hesitam em buscar ajuda por medo do julgamento, da discriminação ou por falta de compreensão sobre a natureza dos problemas de saúde mental. Crenças culturais e religiosas, por vezes, podem influenciar a forma como o sofrimento psíquico é interpretado e se a busca por tratamento profissional é considerada.
- Fatores Socioeconômicos e Vulnerabilidades: A desigualdade social, o desemprego, a pobreza, a violência urbana (incluindo altas taxas de homicídios e violência doméstica), as condições precárias de moradia e a falta de perspectivas são fatores de risco significativos para o desenvolvimento de transtornos mentais. Populações em situação de vulnerabilidade, como pessoas em situação de rua, ribeirinhos com acesso limitado a serviços, população LGBTQIA+ (frequentemente alvo de violência e discriminação) e povos indígenas e comunidades tradicionais (com suas especificidades culturais e desafios de acesso) requerem um olhar e um cuidado diferenciados.
- Recursos e Financiamento: O subfinanciamento crônico do SUS afeta diretamente a capacidade de expansão e qualificação da RAPS. Faltam profissionais (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais) em número suficiente, especialmente fora dos grandes centros. A infraestrutura de alguns serviços pode ser inadequada, e há necessidade de maior investimento em capacitação contínua dos profissionais.
- Questões Específicas da Região: O uso abusivo de álcool e outras drogas, incluindo o óxi (uma variante do crack), é um problema grave de saúde pública em Belém e em toda a região amazônica, com impactos profundos na saúde mental individual e coletiva. A complexidade do contexto amazônico, com suas vastas distâncias e diversidade cultural, também impõe desafios logísticos e metodológicos para a implementação de políticas de saúde mental eficazes. A violência urbana, um problema crônico em muitas capitais brasileiras, também é um fator de estresse e trauma para a população belenense.
Iniciativas Promissoras e Perspectivas Futuras:
Apesar do cenário desafiador, há movimentos e iniciativas que apontam para caminhos de esperança e progresso na saúde mental em Belém:
- Fortalecimento da RAPS: Esforços contínuos por parte de gestores públicos, trabalhadores da saúde e movimentos sociais buscam fortalecer e ampliar a RAPS, com a abertura de novos serviços, a qualificação dos existentes e a melhoria da articulação entre os diferentes pontos de atenção.
- O Papel da Academia e da Pesquisa: As universidades locais, especialmente a UFPA, desempenham um papel crucial na formação de recursos humanos, na produção de conhecimento científico sobre a realidade da saúde mental na Amazônia e no desenvolvimento de projetos de extensão que levam cuidado às comunidades.
- Conscientização e Educação em Saúde Mental: Campanhas como o “Janeiro Branco” e o “Setembro Amarelo” ganham cada vez mais espaço, promovendo a discussão sobre saúde mental, combatendo o estigma e incentivando a busca por ajuda. A mídia local e as redes sociais também podem ser ferramentas importantes nesse processo de conscientização.
- A Força da Comunidade e das Redes de Apoio: A valorização de práticas integrativas e complementares, o fortalecimento de redes de apoio comunitário e a participação ativa dos usuários e familiares nos processos de cuidado são elementos fundamentais para uma abordagem mais humanizada e eficaz da saúde mental. Projetos que envolvem arte, cultura e esporte como ferramentas terapêuticas e de inclusão social também demonstram grande potencial.
- Políticas Públicas: A implementação e fiscalização de políticas públicas voltadas para a saúde mental, com dotação orçamentária adequada e metas claras, são essenciais. Isso inclui políticas intersetoriais que abordem os determinantes sociais da saúde mental, como educação, trabalho, renda, moradia e segurança.
O Cuidado com a Mente como Pilar para o Futuro de Belém
Belém do Pará, com sua identidade amazônica inconfundível, sua rica história e sua gente acolhedora, é uma cidade que encanta e desafia. Assim como cuida de seu patrimônio histórico e de sua biodiversidade, Belém precisa, cada vez mais, voltar seu olhar para o bem-estar psíquico de seus cidadãos. A saúde mental não é um luxo, mas um componente essencial da saúde integral e um direito humano fundamental.
A jornada para garantir um cuidado em saúde mental acessível, humanizado e de qualidade para todos os belenenses é longa e complexa. Exige o compromisso contínuo de governantes, profissionais de saúde, instituições de ensino, sociedade civil organizada e de cada cidadão. Significa combater o estigma, investir em serviços, promover a prevenção, valorizar os saberes locais e construir redes de apoio solidárias.
Ao reconhecer os desafios e celebrar os avanços, Belém pode trilhar um caminho onde a exuberância de sua cultura e natureza encontre eco na força e na resiliência da mente de seu povo. Cuidar da saúde mental é investir no futuro da “Cidade das Mangueiras”, garantindo que sua beleza e vitalidade se reflitam também no bem-estar interior de cada um que nela habita.