Cuiabá: A Alma Tricentenária do Centro da América do Sul e os Contornos da Saúde Mental

Cuiabá, a capital do estado de Mato Grosso, é uma cidade que pulsa com a energia de mais de trezentos anos de história, o calor intenso de sua geografia e a hospitalidade contagiante de seu povo. Conhecida como “Cidade Verde” pela exuberante arborização que busca amenizar suas altas temperaturas, e estrategicamente localizada no coração geodésico da América do Sul, Cuiabá é um caldeirão cultural, um polo de desenvolvimento no Centro-Oeste brasileiro e o portal de entrada para belezas naturais como o Pantanal, a Chapada dos Guimarães e a Amazônia. Com mais de 650 mil habitantes (estimativa IBGE), esta metrópole vibrante enfrenta, como tantos outros centros urbanos, o desafio crescente de cuidar da saúde mental de sua população. Este texto propõe uma imersão na essência cuiabana, explorando sua rica trajetória, sua cultura singular e, em seguida, aprofundando-se no panorama da saúde mental na cidade, seus obstáculos e as iniciativas que florescem em busca do bem-estar psíquico coletivo.

Cuiabá: História, Cultura e Natureza Pulsante na “Cidade Verde”

Fundada em 8 de abril de 1719 por Pascoal Moreira Cabral e Miguel Sutil, bandeirantes paulistas atraídos pela febre do ouro, Cuiabá nasceu às margens do rio de mesmo nome, em meio a terras indígenas. As “lavras do Sutil” transformaram a região num polo de mineração, atraindo aventureiros e desbravadores e marcando o início de uma história rica e, por vezes, isolada do restante do Brasil Colônia. O período das monções, expedições fluviais que ligavam São Paulo a Cuiabá, foi crucial para o abastecimento e a comunicação da vila durante séculos, enfrentando perigos naturais e conflitos com povos indígenas.

Com o declínio da mineração, a economia local diversificou-se, voltando-se para a agricultura de subsistência e a pecuária extensiva. A Guerra do Paraguai (1864-1870) teve impacto significativo, com Cuiabá servindo de retaguarda e hospital de campanha. Somente no século XX, com a melhoria das vias de comunicação e, mais tarde, com o “boom” do agronegócio em Mato Grosso, a cidade experimentou um novo ciclo de crescimento acelerado, transformando-se na metrópole que é hoje.

A cultura cuiabana é um testemunho vivo dessa trajetória, um mosaico de influências indígenas (especialmente dos Bororo e Guató), portuguesas, africanas, e, mais recentemente, de migrantes de diversas partes do Brasil e de países vizinhos. Essa miscigenação se reflete de forma vibrante na música, na dança, no artesanato e, claro, na culinária. O Siriri e o Cururu, danças folclóricas com forte influência indígena e religiosa, animam festas e celebrações, com seus ritmos marcados pela viola de cocho, o ganzá e o mocho. O Rasqueado Cuiabano, um gênero musical que mescla influências da polca paraguaia, do maxixe e de ritmos fronteiriços, é a trilha sonora da cidade.

A gastronomia é um dos pilares da identidade local, rica em sabores autênticos e ingredientes regionais. Os peixes de água doce, como o pacu, o pintado e a piraputanga, são estrelas da mesa, preparados de diversas formas – assados, fritos, na mojica (ensopado com mandioca) ou no famoso “ventreche” de pacu. Pratos como a Maria Izabel (arroz com carne seca), a farofa de banana-da-terra, o furrundu (doce de mamão com rapadura e especiarias) e o bolo de arroz cuiabano (uma iguaria delicada e saborosa) são indispensáveis para quem deseja conhecer a alma culinária da cidade. O artesanato local, com destaque para as peças em cerâmica, as redes tecidas com fibras naturais e os artefatos indígenas, também expressa a riqueza cultural da região.

Urbanisticamente, Cuiabá preserva um charmoso Centro Histórico, com casarões coloniais, igrejas seculares como a de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito (palco de uma das mais tradicionais festas religiosas do estado) e a Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. A Orla do Porto, às margens do Rio Cuiabá, foi revitalizada e se tornou um importante espaço de lazer e contemplação. Parques urbanos como o Mãe Bonifácia e o Tia Nair oferecem refúgios verdes em meio à agitação da cidade, essenciais para o lazer e para mitigar o calor intenso, uma característica marcante de Cuiabá, com temperaturas que frequentemente ultrapassam os 40°C.

A economia cuiabana é fortemente influenciada pelo agronegócio, que domina o estado de Mato Grosso. A cidade funciona como um importante centro de serviços, comércio, logística e decisões administrativas para esse setor. O turismo também desempenha um papel crescente, com Cuiabá servindo como base para explorar as belezas naturais do Pantanal Norte, da Chapada dos Guimarães e das nascentes da bacia amazônica.

Saúde Mental em Cuiabá: Desafios e Iniciativas Sob o Sol do Centro-Oeste

Em meio ao calor humano e geográfico, e ao dinamismo de uma capital em constante transformação, a saúde mental da população cuiabana emerge como uma área que demanda atenção, investimento e um olhar sensível às particularidades locais. O estresse da vida moderna, as pressões socioeconômicas, o clima rigoroso e os desafios inerentes ao crescimento urbano impactam diretamente o bem-estar psíquico dos cidadãos.

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) em Cuiabá:

O Sistema Único de Saúde (SUS) estrutura o cuidado em saúde mental através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), que visa oferecer uma assistência integral, territorializada e focada na reinserção social. Em Cuiabá, essa rede é composta por:

• Centros de Atenção Psicossocial (CAPS): Unidades especializadas que são a espinha dorsal do cuidado em saúde mental. Cuiabá dispõe de diferentes modalidades:

  • CAPS II: Para atendimento a adultos com transtornos mentais graves e persistentes.
  • CAPS III: Com funcionamento 24 horas, oferecendo acolhimento integral e leitos para curta permanência em momentos de crise.
  • CAPS AD (Álcool e Drogas): Focados no atendimento a pessoas com necessidades decorrentes do uso problemático de álcool e outras drogas, incluindo o CAPS AD III (24 horas).
  • CAPSi (Infantojuvenil): Destinado ao cuidado de crianças e adolescentes com transtornos mentais.

• Atenção Primária à Saúde (APS): As Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Unidades de Saúde da Família (USF) são a porta de entrada do SUS e têm um papel fundamental na identificação precoce de sofrimentos psíquicos, no manejo de casos leves a moderados e no encaminhamento qualificado para serviços especializados.

• Serviços Hospitalares e de Emergência: O Centro Integrado de Assistência Psicossocial Adauto Botelho (CIAPS Adauto Botelho) é uma referência estadual, oferecendo atendimento ambulatorial especializado e leitos para internação em casos mais graves que necessitam de cuidado hospitalar. As Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais gerais também devem estar preparados para acolher crises.

• Clínicas-Escola Universitárias: Instituições de ensino superior como a Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), a Universidade de Cuiabá (UNIC), o Centro Universitário de Várzea Grande (UNIVAG – com alcance metropolitano), a Faculdade Fauc (FAUC) e a UNIFACC Cuiabá possuem clínicas-escola de psicologia que oferecem atendimento psicológico gratuito ou a custos sociais para a comunidade. Esses serviços são cruciais para ampliar o acesso e para a formação de novos profissionais.

• Iniciativas da Sociedade Civil e Projetos Específicos: Organizações como o Centro de Valorização da Vida (CVV), através do telefone 188, oferecem apoio emocional vital. Projetos como o “Cuidar Cuiabá” buscam facilitar o acesso a atendimento psicológico. A Fundação Nova Chance (FUNAC) oferece suporte a egressos do sistema prisional e seus familiares, incluindo acompanhamento psicossocial.

Desafios no Acesso e na Promoção do Bem-Estar Psíquico em Cuiabá:

Apesar da existência dessa rede, a população cuiabana enfrenta diversos obstáculos para acessar um cuidado em saúde mental abrangente e de qualidade:

• Acesso e Demanda: A procura por serviços de saúde mental é crescente e, muitas vezes, superior à capacidade de atendimento da rede, resultando em filas de espera. A vasta extensão territorial da cidade e a concentração de alguns serviços em determinadas regiões podem dificultar o acesso para moradores de áreas mais afastadas. O calor intenso pode, inclusive, ser um fator adicional que desestimula o deslocamento para buscar ajuda.
• Estigma e Barreiras Culturais: O preconceito em relação aos transtornos mentais e à busca por ajuda psicológica ainda é uma realidade. Muitas pessoas sofrem em silêncio por medo do julgamento, por desconhecimento sobre as possibilidades de tratamento ou por interpretarem o sofrimento psíquico sob outras óticas que não a da saúde.
• Impactos Socioeconômicos e Vulnerabilidades: Fatores como desigualdade social, desemprego, violência urbana, dificuldades de moradia e acesso limitado a outros direitos básicos são estressores significativos que podem comprometer a saúde mental. Populações em situação de vulnerabilidade, como comunidades periféricas, indígenas urbanizados e pessoas em situação de rua, demandam um olhar e um cuidado ainda mais específicos e atentos.
• Recursos e Infraestrutura: A necessidade de mais profissionais qualificados na rede pública (psiquiatras, psicólogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais), bem como o investimento contínuo em infraestrutura e na qualificação dos serviços, são desafios persistentes para o fortalecimento da RAPS.
• Especificidades Regionais: O clima extremo, com seu calor intenso, pode ser um fator de estresse físico e mental. Questões relacionadas à rápida urbanização, aos impactos socioambientais do agronegócio no entorno e às particularidades da saúde mental em comunidades ribeirinhas ou mais isoladas também merecem atenção. O uso problemático de substâncias psicoativas é uma preocupação constante.

Sementes de Esperança: Iniciativas e Perspectivas para o Futuro da Saúde Mental Cuiabana:

Apesar dos obstáculos, Cuiabá demonstra um crescente reconhecimento da importância da saúde mental, com diversas iniciativas buscando semear esperança e promover o cuidado:

• Políticas Públicas e Programas: Esforços por parte das gestões municipal e estadual buscam fortalecer a RAPS, ampliar o acesso aos serviços e qualificar o atendimento, embora os desafios orçamentários e estruturais sejam contínuos.
• O Papel da Academia na Pesquisa e Extensão: As universidades locais são fundamentais na formação de profissionais de saúde mental, na realização de pesquisas que buscam compreender as realidades locais e no desenvolvimento de projetos de extensão que levam cuidado e informação às comunidades.
• Conscientização e Educação em Saúde Mental: Campanhas como o “Janeiro Branco” e o “Setembro Amarelo” têm ganhado força em Cuiabá, promovendo debates, reduzindo o estigma e incentivando a busca por ajuda profissional. A mídia e as redes sociais também desempenham um papel importante na disseminação de informações corretas.
• A Importância da Intersetorialidade: Há um entendimento crescente de que a saúde mental deve ser abordada de forma intersetorial, articulando-se com a assistência social, educação, cultura, esporte, segurança pública e direitos humanos, para promover um cuidado integral e abordar os determinantes sociais do sofrimento psíquico.

Cultivando o Bem-Estar na Terra do Sol e da Hospitalidade

Cuiabá, a tricentenária “Cidade Verde”, é um lugar de encontros, de calor humano e de uma resiliência forjada ao longo de séculos de história e adaptação a um ambiente singular. Assim como cultiva suas tradições e busca o desenvolvimento sustentável, a capital mato-grossense precisa, cada vez mais, cultivar o bem-estar psíquico de seus habitantes. A saúde mental não é um luxo, mas um direito fundamental e um pilar para uma sociedade mais justa, saudável e próspera.

A jornada para garantir um cuidado em saúde mental acessível, humanizado, de qualidade e culturalmente sensível para todos os cuiabanos é contínua. Exige o compromisso persistente de gestores, profissionais de saúde, instituições de ensino, sociedade civil organizada e de cada cidadão. É preciso seguir combatendo o estigma, investindo na rede de cuidados, promovendo a prevenção e valorizando o acolhimento e a escuta.

Ao abraçar essa causa, Cuiabá pode garantir que o calor que emana de seu sol e de seu povo seja também o calor do cuidado e da esperança, permitindo que a saúde e a vitalidade floresçam plenamente, tanto no corpo quanto na mente de cada cuiabano.